Por Priscilla Negrão

Criado em 12/10/24

Foto: Reprodução/Instagram

Por que crianças gostam tanto de Ana Castela – e será que deveriam ouvir suas músicas? Essa decisão tem impactos mais graves do que você imagina

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Hoje, enquanto escrevia sobre um evento de Dia das Crianças em Sorocaba, um detalhe me chamou a atenção: o show principal será da cantora Ana Castela. Mas será que ela é a escolha mais adequada para um evento voltado ao público infantil? As crianças realmente gostam dela — mas deveriam?

Ana Castela, com apenas 20 anos, se tornou uma das maiores estrelas do sertanejo contemporâneo, e, curiosamente, conquistou um exército de pequenos fãs. Seus shows estão repletos de crianças imitando seus looks coloridos de boiadeira, repetindo coreografias e cantando suas músicas com entusiasmo. Isso, claro, levanta uma questão importante: deveríamos celebrar esse fenômeno ou nos preocupar?

Afinal, seus hits são realmente adequados para crianças? Muitas de suas músicas tratam de temas adultos, com letras que não foram pensadas para o público infantil, mas que agora ecoam entre meninos e meninas nas pistas de shows e nas redes sociais. Existe diferença entre cantar “Segura o Tchan” e “Me bota, me bota, me bota gostosin’”?

Será que estamos repetindo os erros das gerações passadas, quando músicas como “Boquinha da Garrafa” eram cantadas por crianças em festas e programas de TV? Ou estamos apenas atualizando um problema antigo, agora amplificado pelas redes sociais?

Essa discussão vai além da cantora. Qual é o papel dos pais, da indústria da música e da sociedade nesse cenário? Estamos realmente cuidando do que nossas crianças estão consumindo, ou estamos deixando que a cultura midiática dite essas regras sem questionamentos?

Se esse dilema te incomoda, ou se te provoca a refletir sobre a infância e as mensagens que estamos passando para as próximas gerações, continue lendo. Porque a resposta para essas perguntas pode ser mais urgente do que imaginamos.

Crianças cantando letras com conotação sexual: qual o impacto disso?

A música tem um papel fundamental no desenvolvimento cognitivo das crianças. De acordo com o neurologista Mauro Muskat, professor da pós graduação do programa de Educação e Saúde da infância e Adolescência da UNIFESP, a música estimula áreas do cérebro associadas à memória, à concentração e ao raciocínio lógico, além de fortalecer a capacidade das crianças de gerenciar emoções e socializar.

Se a música pode ajudar tanto assim no desenvolvimento, por outro lado, ela também pode prejudicar: para que a música tenha um impacto positivo, é essencial que o conteúdo seja adequado à faixa etária, respeitando o estágio de desenvolvimento emocional da criança.

Um dos pontos centrais dessa discussão é as músicas que as crianças consomem hoje. Seja funk, sertanejo ou trap, as consequências de expor crianças a conteúdos inadequados, como vocês verão ao longo deste artigo, são mais graves e permanentes do que a maioria das pessoas imagina.

Vamos analisar aqui o caso do repertório da Ana Castela, atual fenômeno entre as crianças, mas as reflexões deste artigo valem para outros ídolos infantis, como as funkeiras Anitta e Ludmila, o cantor Jão e todos os Mcs e funkeiros em geral.

Embora Ana Castela afirme que “tenta moderar seu comportamento em shows com muitas crianças e omitir palavrões”, as letras de suas canções claramente não foram feitas para o público infantil. A música “Roça em Mim”, por exemplo, traz versos explícitos sobre desejo sexual, sob uma batida dançante: “Roça, roça em mim, tira o chapéu e a bota e me bota gostosinho”.

Já na canção “Pipoco”, Ana canta: “Ela só quer dançar, mas eu tô de olho, é no pipoco que vai me tirar o sono”. Embora a palavra “pipoco” possa parecer inofensiva, o contexto da música sugere uma atração intensa e até violenta, algo que não deveria ser parte do repertório infantil.

Outro exemplo é “Bombonzinho”, uma parceria de Ana Castela com Carol Biazin, que inclui versos como: “Vem cá, bombonzinho, acerta o meu coração, me chama de docinho que eu te levo pro colchão”. O ritmo cativante pode atrair o público jovem, mas a letra trata claramente de intimidade física e desejo sexual — algo que deveria estar bem distante do universo das crianças.

A popularidade dessas músicas entre o público infantil evidencia a falta de barreiras claras entre conteúdo adulto e infantil, um problema que precisa ser urgentemente abordado por pais, artistas e pela sociedade como um todo.

Crescer antes da hora faz MUITO mal à saúde

O fenômeno que pediatras e cientistas chamam de “adultização” da infância pode ter consequências graves para a saúde física e mental das crianças, incluindo uma visão distorcida do próprio corpo e do corpo dos outros, dificultando o estabelecimento de limites saudáveis no futuro.

Ao permitir que as crianças consumam músicas com conotação sexual, os pais estão acelerando um processo que deveria acontecer de maneira natural e saudável em uma fase posterior da vida.

Estudos em psicologia e educação indicam que a exposição precoce a conteúdos sexualizados afeta negativamente o desenvolvimento emocional e cognitivo. Repetir palavras e temas de caráter adulto, como as letras de algumas músicas, pode normalizar comportamentos inadequados, contribuindo para a sexualização precoce.

A neuropsicóloga Alice Tozzi explica neste artigo que essa exposição ao universo adulto — por meio de roupas, músicas, danças e ambientes — antecipa fases do desenvolvimento biológico e emocional, levando à sexualização das crianças antes do tempo.

Essa sexualização precoce ensina meninas a associar seu valor à capacidade de atrair desejo e atenção sexual, o que é extremamente nocivo. “Tudo isso por causa de uma dancinha? Uma música?”. Sim. Cantar e dançar sobre intimidade física na infância confunde as crianças, fazendo-as ver o mundo de uma forma que ainda não são capazes de processar, internalizando mensagens distorcidas sobre relacionamentos e sexualidade.

O problema não está apenas nas letras das músicas. As coreografias aparentemente inocentes que muitas crianças reproduzem no TikTok podem ter graves consequências, acelerando o processo de puberdade, especialmente para meninas.

Pesquisas mostram que a menarca (primeira menstruação) tem ocorrido cada vez mais cedo, influenciada por fatores comportamentais, ambientais e nutricionais.

Essa antecipação da puberdade pode afetar a saúde física e emocional das meninas. Do ponto de vista físico, elas param de crescer mais cedo, o que pode resultar em uma estatura menor que o esperado. Além disso, são mais propensas a desenvolver problemas de saúde na vida adulta, como câncer de mama, obesidade, hipertensão, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares, devido à exposição precoce aos hormônios sexuais, que afetam o desenvolvimento físico e metabólico.

Emocionalmente, a puberdade precoce pode ser devastadora. Meninas que amadurecem mais cedo frequentemente enfrentam maiores riscos de depressão, ansiedade e dificuldades emocionais. Elas podem se sentir deslocadas socialmente, recebendo atenção indesejada e sendo sexualizadas precocemente. Isso pode resultar em bullying, assédio e envolvimento em comportamentos de risco, como relacionamentos inadequados para sua idade.

Músicas geram sexualização precoce e promovem a cultura da pedofilia

Um ponto crucial que não pode ser ignorado é como a sexualização precoce promovida por músicas como as de Ana Castela alimenta uma cultura maior de exploração e vulnerabilidade infantil. A “cultura da pedofilia” não se refere apenas a crimes explícitos de abuso sexual, mas também ao ambiente social que sexualiza crianças e normaliza o desejo por corpos infantilizados.

Músicas que retratam meninas como “novinhas” ou que utilizam termos sexualizados para descrever comportamentos infantis estão inseridas nessa lógica, e reforçam uma narrativa onde as meninas são ensinadas a suspirar por amor e a buscar validação sexual desde cedo. Isso as deixa vulneráveis a agressões e a uma mentalidade onde seu valor é medido pela capacidade de atrair o olhar masculino.

A mídia, as músicas e o entretenimento em geral reforçam estereótipos e objetificam meninas cada vez mais cedo, normalizando comportamentos que, em última instância, contribuem para a cultura da pedofilia. E 1quando crianças cantam letras que sexualizam comportamentos e atitudes, elas estão, em parte, sendo ensinadas a valorizar aspectos de suas identidades que ainda não compreendem totalmente.

A cultura midiática, ao sexualizar crianças em músicas, filmes e campanhas publicitárias, perpetua essa cultura de objetificação e contribui para a vulnerabilidade das meninas. É urgente que tenhamos uma discussão mais ampla sobre o impacto dessas produções culturais e como elas ajudam a normalizar comportamentos problemáticos.

A longo prazo, a “morte da infância” traz consequências profundas e complexas: violência sexual infantil, gravidez precoce, abandono escolar e menos meninas nas ciências e áreas exatas. Esses efeitos se manifestam de forma não óbvia e gradual, e por isso tornam difícil para muitos perceber a gravidade de uma criança de 7 anos fazendo uma “dancinha” que simulam o sexo.

Músicas de artistas como Ana Castela, Anitta e Ludmilla promovem um discurso de empoderamento feminino, mas ao focarem na sexualidade, especialmente quando consumidas por crianças, acabam fazendo exatamente o contrário e contribuindo para a vulnerabilidade das meninas na sociedade.

Em vez de empoderar, esse contato precoce com conceitos sexuais reforça a cultura de objetificação, ensinando meninas desde cedo que precisam buscar aprovação masculina. Isso, em vez de fortalecê-las, as torna ainda mais vulneráveis em uma sociedade que já as coloca em desvantagem.

Como as crianças descobriram a Ana Castela?

Diante desse cenário, é importante perguntar: como as crianças acabam consumindo a música de Ana Castela? Muitos pais acreditam que têm controle sobre o que seus filhos ouvem até certa idade, mas as crianças frequentemente descobrem músicas navegando na internet, ou por meio de amigos, nas festas ou até na recreação de ambientes públicos.

Um estudo realizado pela Deezer mostra que, até os 10 anos de idade, os pais ainda exercem grande influência sobre o gosto musical dos filhos. Nesse período, as crianças estão mais abertas a ouvir músicas escolhidas por seus pais, sendo fortemente influenciadas pelas suas preferências. Após essa idade, no entanto, a abertura diminui, e as crianças começam a buscar sozinhas as músicas que estão em alta entre seus amigos e nas redes sociais.

Isso significa que, nos primeiros anos, os pais ainda têm a oportunidade de moldar as preferências musicais de seus filhos, oferecendo uma variedade de gêneros mais adequados ao desenvolvimento infantil. No entanto, a partir da pré-adolescência, a influência das redes sociais e dos amigos se torna dominante, e o controle parental diminui.

Ana Castela costuma dizer que algumas de suas músicas “não podem ser mostradas pelas mães” às crianças, transferindo a responsabilidade de filtrar o conteúdo aos pais. No entanto, essa visão simplifica a complexidade da questão e isenta de responsabilidade quem, de fato, fatura com a popularidade de conteúdos que contribuem para a adultização da infância.

Embora muitos pais tentem supervisionar o que os filhos consomem, o poder das redes sociais torna essa tarefa um grande desafio. Plataformas como TikTok e YouTube são extremamente populares entre as crianças e muitas delas têm o primeiro contato com a música de Ana Castela nesses ambientes.

A exposição a vídeos virais e dancinhas populares acontece de forma rápida e muitas vezes sem que os pais percebam. Isso reforça a importância de uma supervisão constante, mas também evidencia o quanto as plataformas digitais dificultam esse controle e também são responsáveis pelo processo de adultização precoce das crianças e claro, por suas consequências futuras.

A ideia de que somente os pais são responsáveis por proteger os filhos ignora os desafios que as novas tecnologias e a socialização digital trazem.

Crianças são expostas a músicas em festas e vídeos virais sem qualquer supervisão parental direta. Portanto, a responsabilidade deveria ser compartilhada entre pais, sociedade, e artistas. Ana Castela, sabendo da sua popularidade entre o público infantil, não deveria se isentar dessa discussão.

Embora diga que “não canta para crianças”, ela também não deixa de aproveitar  o potencial lucrativo desse público. Recentemente, anunciou planos para desenvolver um desenho animado voltado ao público infantil, chamado “A Boiadeirinha”, além de outras iniciativas pensadas diretamente para crianças, como músicas direcionadas a esse nicho. Além disso, uma de suas canções está na trilha sonora da novela infantojuvenil “A Infância de Romeu e Julieta”, do SBT.

Eu dancei o Tchan e sobrevivi? Será?

O consumo de músicas com conotação sexual por crianças não é algo novo. Nos anos 90, programas como “É o Tchan” e “Banheira do Gugu” já expunham crianças a conteúdos sexualizados, com coreografias e situações inapropriadas. A nostalgia muitas vezes faz com que algumas pessoas minimizem os efeitos desse tipo de conteúdo, afirmando que “sempre foi assim”. Mas se foi prejudicial para aquela geração, por que repetir o erro com a geração atual?

É fundamental que aprendamos com os erros do passado para não perpetuar comportamentos nocivos ao desenvolvimento infantil. Não podemos usar a desculpa de que “sobrevivemos” a esses conteúdos para normalizar sua presença na vida das crianças de hoje.

Até porque hoje temos mais informação e já sabemos que a exposição precoce a temas adultos pode ter consequências duradouras. O impacto físico, psicológico e emocional disso pode ser profundo, com efeitos que se estendem até a vida adulta.

Ao traçar um paralelo com as gerações passadas, podemos refletir: será que erramos no passado e devemos continuar errando? Ou podemos, como sociedade, aprender com essas falhas e criar um ambiente mais saudável para o crescimento das crianças?

Músicas como as da Ana Castela podem parecer inofensivas à primeira vista, mas trazem uma carga de conteúdo adulto que, assim como o “Tchan” ou a “Banheira do Gugu”, pode influenciar negativamente a formação infantil.

Muitas pessoas que cresceram na década de 90, ouvindo músicas sexualizadas ou assistindo a esses programas, podem se lembrar disso com normalidade. No entanto, os impactos negativos são claros: a sexualização precoce, distorção de valores e comportamentos inadequados. Continuar a seguir esse caminho, ao invés de refletir e aprender com esses erros, seria perpetuar um ciclo de danos psicológicos e emocionais que podem ser evitados.

Vamos repetir os erros do passado ou aprender com eles?

Idade mínima nos eventos

Além dos pais, a sociedade como um todo tem um papel fundamental na proteção das crianças contra a exposição a conteúdos inadequados. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que espetáculos e eventos públicos devem informar com clareza as classificações etárias e proibir o acesso de menores a materiais impróprios.

No entanto, muitos shows não seguem essas normas, e é comum ver crianças em eventos com conteúdo adulto, sem que haja um controle efetivo.

Ana Castela não é a única artista cujas músicas alcançam o público infantil, mesmo sem serem destinadas a eles. A presença de crianças em shows como os de MC Pipokinha e Melody, onde há clara hipersexualização e conteúdo impróprio, levanta um alerta sobre a necessidade de maior regulamentação e fiscalização de shows e festivais.

Apenas quando as plataformas digitais, as redes sociais, os produtores, as casas de shows e os próprios artistas forem co-responsabilizados e punidos financeiramente por expor crianças a conteúdos inadequados é que o cenário comecará a mudar. Enquanto tudo for colocado nas costas dos pais, as crianças continuarão pagando essa conta com o que possuem de mais valioso: seus futuros.

Enquanto isso, a recomendação é: controle o conteúdo que seu filho é exposto em casa e na rua. Não leve em eventos que podem ter informações e conteúdos que não são adequados pra idade dele.

A infancia dura apenas 12 anos, pela saude e pelo futuro dos seus filhos, deixe ele viverem esses poucos anos como se deve: sendo criança!

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Atenção: Todas as informações são de responsabilidade dos organizadores do evento e estão sujeitas a modificações sem prévio aviso. As informações foram checadas pela equipe de reportagem do São Paulo para Crianças em 12/10/24. Antes de sair de casa, confirme os dados com o destino, para evitar imprevistos

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