Acreditar que a criminalização do aborto protege a vida e evita que mulheres abortem é uma ilusão de quem não conhece a realidade social brasileira. A proibição do aborto, na prática, restringe o procedimento às mulheres que possuem mais recursos e suporte, que podem pagar por um procedimento seguro. Veja a quantidade de mulheres ricas e famosas que assumiram em entrevistas ou redes sociais que já realizaram o procedimento.
Além disso, apenas 3% dos municípios brasileiros oferecem serviços de aborto legal, forçando muitas mulheres a viajar longas distâncias e enfrentando barreiras adicionais para acessar esse direito.
Esse cenário penaliza principalmente as mulheres mais vulneráveis a recorrerem a métodos inseguros, resultando em graves consequências à saúde e até mortes. Entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram devido a complicações de abortos realizados sem segurança.
Determinar um limite de 22 semanas para o procedimento, como o Projeto de Lei 1904/24, sugere, vai inclusive contra a ciência. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca que limites gestacionais para o aborto não são baseados em evidências científicas e estão associados apenas a estatísticas de maiores taxas de mortalidade materna.
Vale lembrar que o número de casos de estupro no Brasil está crescendo: o ano de 2022 atingiu recorde histórico em número de estupros e estupros de vulneráveis, com 74.930 vítimas, de acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS),
Destas, 6 em cada 10 vítimas são crianças com idade entre 0 e 13 anos. Em 10 anos (2013-2022), a média de meninas menores de 14 anos que deram à luz foi de 21.905,5 por ano. Além disso, 74,2% dessas meninas eram negras, destacando a disparidade racial e socioeconômica nas vítimas de violência sexual.
A cada ano, mais de 20 mil meninas deixaram para trás a infância ou a adolescência para viverem a maternidade. Se isso já é desafiador quando somos adultas, imagine o sofrimento que isso causa em uma criança.
Mesmo diante desse cenário, no Brasil a descriminalização do aborto não é debatida com seriedade pelos governantes e é utilizada principalmente para angariar votos de grupos conservadores. Enquanto isso, na América Latina 6 dos 13 países descriminalizaram ou legalizaram o procedimento: Chile e Colômbia não tipificam mais o aborto como crime, e na Argentina, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa foram criadas leis para garantir a interrupção da gravidez de forma segura.
ONU está de olho no Brasil

Tressa Middleton: a mãe mais jovem do Reino Unido, deu à luz uma menina aos 12 anos de idade.
Desde maio de 2024, a ONU, através do Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), tem analisado a alta taxa de gravidez infantil decorrente de estupros de vulnerável no Brasil, cobrando o governo por medidas efetivas.
Em maio de 2024, o CEDAW cobrou o Brasil pela garantia do aborto legal, após mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos terem se tornado mães em 2023.
A alta taxa de mortalidade materna no país é diretamente influenciada pela falta de acesso ao aborto legal e seguro, uma preocupação destacada pelo CEDAW.
Além disso, nesta sexta-feira, 14 de junho, mais de 20 organizações feministas denunciaram o projeto de Lei (PL) 1.904/2024, que equipara o aborto em gravidez avançada ao crime de homicídio, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ao Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Discriminação Contra as Mulheres.
A denúncia, assinada por entidades como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Conectas Direitos Humanos e a ONG Criola, alerta que a aprovação do projeto colocaria meninas em risco, pois elas demoram mais para identificar a gravidez em casos de violência sexual e procuram serviços de aborto em estágios mais avançados. As organizações pedem a revogação de qualquer iniciativa legislativa que vise impor limites e criminalizar o aborto, incluindo o PL 1904/2024.
O documento também denuncia o fechamento do Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual e a oferta de aborto legal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, alegando que a suspensão do serviço foi injustificada.
Pressão popular: campanha “Criança não é Mãe”
Diversas organizações da sociedade civil estão mobilizando ações e campanhas para pressionar os deputados a não aprovarem o PL – entre elas, a campanha “Criança Não é Mãe”, uma iniciativa formada por um grupo de 18 entidades da sociedade civil que visa combater o Projeto de Lei 1904/24.
Esta campanha destaca que a mudança na lei prejudicará principalmente meninas menores de 14 anos, que frequentemente não descobrem a gravidez cedo devido ao abuso sexual. O movimento ressalta que a maioria dessas vítimas é composta por meninas pobres e negras, exacerbando as desigualdades no acesso à saúde e à justiça.
É importante enfatizar que uma criança violentada não se torna “mãe” no sentido pleno, pois não possui capacidade psicológica, física ou financeira para isso.
Esse cenário representa mais um abuso contra as mulheres, já que a responsabilidade de cuidar da criança resultante do estupro geralmente recai sobre outra mulher, como a mãe, tia ou avó da vítima. Assim, a criança dará à luz, mas a verdadeira mãe será uma adulta que precisará assumir a situação que a saúde pública não conseguiu resolver a tempo.
Debate real ou manobra política?